: Tweet A governação de José Martins no Kuando-Kubango é uma amostra local do nível de desgovernação que tem conduzido a maioria da população ao abismo socioeconómico. Em Janeiro passado, o governador mereceu o voto de confiança do presidente João Lourenço, ao ser reconduzido no cargo da novel província do Kubango, após a divisão do Kuando-Kubango em duas províncias.
Depois da investigação do Maka Angola sobre o modo como as autoridades locais usam a aquisição fictícia de tinteiros e resmas de papel para saquear os cofres do Estado, vimos agora expor o tipo de consultoria jurídica que é contratada pelo governo provincial. Em vez de contribuir para a implementação de actos de probidade, como devia, essa consultoria está eivada de ilegalidades, como adiante se ilustrará.
Desde que iniciámos a investigação, temos acompanhado a dinâmica na secretaria-geral do governo provincial, nomeadamente no que toca à produção de facturas, a contratos e notas de entrega com datas retroactivas para justificação de despesas e à aparente legalização de alguns dos actos anteriormente denunciados e outros que estão ainda por denunciar. O secretário-geral do governo provincial do Kubango, Adelino Mangonga Manuel, assim como o gabinete de comunicação local ignoraram as nossas chamadas e mensagens de pedido de esclarecimentos. À data dos factos, Mangonga era o secretário-geral do Kuando-Kubango.
A consultoria jurídica A 22 de Maio de 2023, o governador José Martins homologou o contrato de consultoria jurídica “em matéria de contratação pública”, com a empresa comercial Alberlupito – Serviços (SU). O contrato, com duração de um ano, previa a assessoria “em matéria de contratação pública” e custou ao governo provincial do Kuando-Kubango o valor de 120 milhões de kwanzas. O secretário-geral Adelino Mangonga Manuel assinou o acordo.
Criada a 29 de Junho de 2020, a empresa tem como sócio único Alberto Muhaco Lupito, que é o seu gerente. Como objecto social, a Alberlupito é uma “faz-tudo”, desde serviços de construção civil e obras públicas, até à lavagem de carros, venda de bebidas e medicamentos, gestão de salões de beleza, pesca e peixaria, segurança privada, consultoria e gestão, etc. Alberto Muhaco Lupito é advogado de profissão, inscrito na Ordem de Advogados de Angola (OAA).
Ora, para o efeito, o governador José Martins procedeu à escolha da Alberlupito por via de um concurso limitado por convite.
A Lei dos Contratos Públicos (Lei n.º 41/20) estabelece que, para o concurso limitado por convite, devem ser convidadas pessoas singulares ou colectivas com base no cadastro de fornecedores do Estado ou “no conhecimento da aptidão e da credibilidade que lhes reconhece para a execução do contrato pretendido”.
Como nota o analista jurídico do Maka Angola, Rui Verde, “a prestação de consultoria jurídica e o exercício de mandato judiciais são regulados por normas legais, designadamente o Estatuto da OAA (versão fixada pelo Decreto n.º 56/05, de 13 de Maio)”.
“Nos termos do artigo 41.º desse Estatuto, só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na OAA podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão e, designadamente, exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada”, esclarece ainda o jurista.
Rui Verde apresenta duas excepções à norma. A primeira, interna, segundo a qual um jurista que trabalhe na função pública não tem de ser advogado e pode prestar consulta jurídica ao seu empregador, o Estado. “Contudo, essa consulta é interna, para o serviço ou entidade para a qual trabalha, e não dá direito a que essa entidade ‘venda’ serviços para fora. É proibida a existência de sociedades comerciais a venderem serviços de advogados”, afirma.
Trata-se, portanto, de um monopólio dos advogados.
Rui Verde explica, então, a segunda excepção ao monopólio dos advogados sobre a consultoria jurídica. Esta cinge-se aos professores de direito, “que podem emitir pareceres, mas sempre a título pessoal”.
“Portanto, as sociedades comerciais não podem exercer funções de consulta jurídica. Se tiverem juristas nos seus quadros, a consulta é apenas interna e não pode ser externalizada. Se tiverem advogados, têm de ser estes, a título pessoal, a prestar a consulta, tal como se apresentarão em tribunal em nome próprio”, remata.
“Assim, qualquer contrato que vise a prestação de serviços de consulta jurídica está completamente fora do seu objecto social e a violar a lei”, assevera Rui Verde. O jurista considera que o contrato entre o governo provincial do Kuando-Kubango e a Alberlupito “é nulo”.
O contraditório O Maka Angola enviou, por e-mail, seis questões ao proprietário da Alberlupito, que prontamente respondeu pela mesma via, mas com um texto generalista, que aqui respigamos.
“Nos casos em que a consultoria é essencialmente jurídica são alocados à equipa colegas advogados com inscrição em vigor que prestam o seu saber jurídico nas entidades públicas contratantes, agindo estes como autênticos profissionais liberais, exercendo os actos próprios da advocacia”, justifica Alberto Muhaco Lupito.
Segundo o gestor, “quando a actividade versar em consultoria do ponto de vista geral, formações, assistência técnica na elaboração de procedimentos concursais, é o promotor quem coordena toda a actividade”.
Afirma ter “um vasto leque de serviços de assessoria, consultoria e assistência técnica em matéria de contratação pública realizados nas várias entidades públicas contratantes da administração central e local do Estado”, para além de outras realizações profissionais e académicas.
Alberto Muhaco Lupito informa ter, para além da licenciatura em Direito pela Universidade Católica, duas pós-graduações em Contratação Pública, Análise e Avaliação de Propostas e Contratos Administrativos, bem como em Criminalidade Económica, Financeira, Internacional e Europeia, ambas pela Universidade de Coimbra (Portugal).
Insiste que o objecto social da empresa é a “prestação de serviços, consultoria e gestão”. Nota que a Alberlupito “tem outras valências que excedem os actos próprios da advocacia, daí optar-se em avançar com a empresa, em função da maior amplitude do seu objecto social, entretanto, na parte que respeita à Consultoria Jurídica, tais actos são praticados exclusivamente por advogados com inscrição em vigor, aliás, a equipa de trabalho é composta essencialmente por advogados com especializações nas áreas em que actuam”.
Lupito explica o processo de transparência que deve ocorrer no âmbito da contratação pública e como o contrato do Estado com a sua empresa deve estar “obrigatoriamente publicado no Portal das Compras Públicas para o crivo do órgão supervisor e regular do mercado de contratação pública.”
Acresce também que “as situações que levam à ilegalidade dos contratos são objectivas e muitas delas previstas essencialmente na Lei dos Contratos Públicos, nas Regras de Execução do Orçamento Geral do Estado e demais diplomas que regem as aquisições públicas”.
O gerente da Alberlupito recorre ao sigilo e à confidencialidade, com base em normas não especificadas, para evitar quaisquer comentários sobre os pormenores do contrato. “(…) estamos impedidos de tecer quaisquer informações, sob pena de se incorrer à responsabilidade criminal”, conclui.
A confusão conceptual O analista do Maka Angola esclarece que Alberto Lupito “confunde algo que qualquer estudante de Direito sabe que não se confunde: uma pessoa singular (indivíduo) com uma pessoa colectiva (sociedade comercial)”.
Em linguagem simplista, o facto de Lupito ser advogado nada tem a ver com uma sociedade comercial em cujo objecto social nem sequer consta, nem poderia constar, a prestação de serviços jurídicos.
A lei é clara e repete-se: uma sociedade comercial não pode exercer a função de advogado. No ordenamento jurídico, a advocacia é regulamentada de forma restrita, sendo uma actividade privativa de profissionais inscritos na OAA e de sociedades de advogados devidamente registadas e constituídas exclusivamente por advogados, que são sociedades civis e não comerciais.
As sociedades comerciais, que têm por finalidade o exercício de actividades empresariais para obtenção de lucro, não possuem autorização legal para realizar actividades privativas da advocacia, como representação judicial ou consultoria jurídica.
Como Lupito admite prestar serviços a vários organismos públicos, parece ser normal que tanto o governo central como os governos locais e outras entidades públicas contratem serviços de consultoria jurídica a empresas comerciais.
Por isso, insistimos: uma sociedade comercial que inclua advogados nos seus quadros não pode, mesmo assim, exercer as funções da advocacia. Em Angola, a prática da advocacia é regulada pelo Estatuto da OAA. Esta exige que as actividades próprias dos advogados sejam realizadas apenas pelos advogados individuais ou por sociedades de advogados constituídas de acordo com as normas da Ordem, que são sociedades civis e não comerciais.
Tudo ao contrário do que se passa neste caso.
Os bolsos do Estado Um advogado angolano, que tem larga experiência em contratos com entidades públicas mas prefere manter o anonimato, manifesta estranheza sobre o contrato e o comportamento profissional do seu colega Alberto Muhaco Lupito. E explica que o advogado poderia ter feito o contrato em nome próprio, como profissional liberal, o que o habilitaria a pagar apenas 6,5 por cento de impostos. Ao escudar-se por detrás de uma empresa comercial, como comerciante, o advogado Lupito tem de pagar 14 por cento de impostos.
“Para quem quer ganhar dinheiro, não faz sentido optar por uma via ilegal e pagar mais impostos. Caso assinasse como advogado, estaria a agir dentro da lei e ganharia mais ao pagar menos impostos”, explica o advogado. “Isso pode ser mais um esquema para lançar mãos aos bolsos do Estado e afastar a responsabilidade pessoal pelos danos causados ao erário público”, remata.
Conclusão Com tantos mecanismos de transparência e regras de contratação pública, como descreve o próprio Alberto Muhaco Lupito, como é possível normalizar estas amostras de abuso de fundos públicos?
Os profissionais do Direito sempre tiveram um papel preponderante na arquitectura da administração pública e do poder político, quer durante o consulado cleptocrático de José Eduardo dos Santos, quer durante os mandatos de João Lourenço, em que o sistema judicial foi utilizado como arma para a captura do Estado, para a consagração da nova cleptocracia.
Quem luta pelo Estado de Direito? É a pergunta que hoje se coloca à classe de juristas e advogados.
Já nem sequer se pode pedir à Procuradoria-Geral da República (PGR) que investigue as finanças do Kuando-Kubango, ora Kuando e Kubango. É que a própria PGR sai rebaixada nas despesas financeiras locais: a 24 de Fevereiro de 2023, o governo provincial registou ter pago 3,6 milhões de kwanzas à empresa Grejomar pela “aquisição de bebidas para apoio à equipa da PGR no Palácio”. Continuem a beber, senhores procuradores!
Refira-se como nota final que a situação de Lupito e da sua empresa se assemelha à do primeiro-ministro português Luís Montenegro (que é advogado) e de uma sua empresa comercial que terá prestado consultoria jurídica. No caso, a Ordem dos Advogados portugueses, por via da sua bastonária, ordenou um inquérito para averiguar se o primeiro-ministro teria cometido a procuradoria ilícita, um crime que pune quem, em violação do disposto na norma que regula os actos próprios de advogados, praticar esses actos.
Lupito está bem acompanhado…
Article publié le mardi 11 mars 2025
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