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João Lourenço proferiu o seu discurso anual sobre o estado da Nação – o sétimo desde que assumiu a Presidência. Foram 55 páginas, duas horas e meia ininterruptas, em que João Lourenço revelou como se governa muito bem e ao seu governo. Esta é uma realidade.
A outra realidade é aquela em que vive a maioria dos angolanos: desnorteados pela falta de liderança, a fome e a miséria atroz, qual violência estrutural de um regime político que esmaga o seu próprio povo. É a juventude neutralizada pelo desemprego e milhões de crianças sem futuro, excluídas do sistema de educação e dos benefícios das riquezas do país.
O presidente preferiu, como tem sido tradição sua, apresentar um solilóquio, um relatório para si mesmo sobre o muito que fez e que está a fazer, acompanhado de números e muita imaginação, em vez de um discurso dirigido à Nação.
Foi assim que João Lourenço perdeu a autoridade e a legitimidade moral necessárias para de conectar com o seu povo, com a sua realidade. Enfrenta agora a solidão e as incertezas que aterrorizam os poderosos mal-amados no nosso continente. As pessoas não são coisas, não são números. São um universo de milhões de emoções e sentimentos que requerem, para a sua gestão política, amor e sabedoria, num contexto de organização funcional da administração do Estado, para que se sintam protegidas, empoderadas e partícipes na construção da Nação. As tarefas fundamentais de um estadista são as de organizar a administração do Estado e galvanizar a população, para que cada um realize os seus sonhos individuais com liberdade, confiança no sistema político, ordem e segurança.
Portanto, há um desencontro de realidades entre o país dos governantes, onde o povo é ingrato porque não reconhece como os primeiros se governam tão bem; e a Angola dos angolanos, onde a classe dirigente é a maldição.
É preciso construir uma ponte, uma travessia entre o país de Lourenço e o da maioria dos angolanos. Até 2027, restam ao presidente dois discursos sobre o estado da Nação; nessa altura, entregará o poder, no seu décimo e último ano como presidente da República. Se queremos o bem comum dos angolanos e a renovação das suas esperanças por um futuro melhor, devemos encontrar o caminho para criar uma única realidade, que sirva tanto os dirigentes como os dirigidos.
Temos três anos para encontrar uma saída digna e segura para o actual presidente, o qual nos deixará, como seu maior legado, a autodestruição da hegemonia do MPLA, depois de meio século de dominação absoluta do Estado. – algo que nem a oposição logrou conseguir. Angola e os angolanos precisam de um ex-presidente da República que viva tranquilamente no país, sem medo da vingança dos seus correligionários e do sofrimento do povo. Isso é fundamental para garantir confiança e institucionalização da alternância política. Os dois primeiros presidentes da República – Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos – morreram no estrangeiro; o líder rebelde, Jonas Savimbi, foi morto nas matas; o líder do maior movimento de libertação, no início da guerra contra a colonização, Holden Roberto, morreu na indigência.
Em 2021, publicámos um ensaio (ver aqui e aqui) sobre a incompetência e a desorientação política no governo e as suas consequências na administração pública e na vida dos cidadãos. Sublinhámos que não seria possível mudar fosse o que fosse ou combater a corrupção sem introduzir reformas profundas.
Chamámos ainda a atenção para quatro grandes impedimentos da funcionalidade do Estado: os abusos de poder, a ausência de reformas estruturantes no MPLA, a falta de visão e de liderança e o absentismo de princípios e valores comuns na conduta dos servidores públicos e no exercício da cidadania.
Prevíamos, então, que “a situação tenderá a piorar se a sociedade não discutir, com profundidade e elevação, sobre o que estrangula os actos de governo, a funcionalidade da administração do Estado e o exercício pleno e inteligente da cidadania”.
E porque é que o Estado continua a não ser funcional? Porque nunca se faz uma “avaliação periódica do desempenho dos dirigentes e titulares de cargos públicos” e, pelo contrário, quanto os protegidos cometem erros, mais promoções recebem. Assim se tem enraizado simultaneamente a incompetência e a corrupção moral na administração do Estado. O resto é bar aberto. O presidente não promoveu as boas práticas nos actos de governo e da administração pública e muito menos definiu uma nova visão para o país e um novo estilo de liderança, para estimular a confiança e a segurança nos cidadãos. Piorou o que já estava mal e corrigiu apenas o seu discurso.
Nesse mesmo ensaio, insistíamos que não seria possível realizar “mudanças sérias na administração do Estado sem reformar radicalmente o MPLA”.
Desde então, aprofundou-se ainda mais o vazio ideológico no país, em que a sociedade permanece sem um compasso dos princípios e valores comuns para a conduta geral dos governantes e governados.
Com isso, o presidente tem colocado em causa a estabilidade do próprio Estado. No estudo sobre Porque as Nações Fracassam: As Origens do Poder, da Prosperidade e da Pobreza,Daron Acemoglu e James Robinson produzem um argumento que se aplica bem à política angolana.
Segundo os autores, em realidades como a nossa, quando os líderes têm de optar entre a consolidação do poder pessoal ou a promoção do crescimento económico, escolhem a primeira opção. Tal acontece, asseveram os autores, porque as instituições políticas extractivas, como é o caso de Angola, sobrevivem do impedimento da actividade económica independente que se constitua numa ameaça aos interesses económicos dos próprios dirigentes. Assim, a burocracia para facilitar a extorsão, a chantagem e o negócio consigo mesmo parecem ser os factores dominantes do ambiente de negócios em Angola. Sem liberdade económica e segurança jurídica que a ampare, não há incentivos institucionais para os cidadãos pouparem, investirem e inovarem, conforme sugerem os autores.
Contra o tempo
Já não há tempo, nem clima político, para reformas estruturais que permitam a este governo aproximar-se dos cidadãos, ouvi-los e servi-los. Já não há tempo, nem clima político, para que este governo combata a incompetência e a corrupção desabrida no seu seio. Estas duas forças combinadas são a verdadeira ditadura – o monstro – contra qualquer tipo de reforma estrutural e efectiva para a boa administração pública do Estado.
São actuais as palavras de um influente membro do Bureau Político do MPLA, segundo as quais o país só funcionará quando se fizerem reformas holísticas do sistema político, constitucional, da administração pública e da economia. Na nossa realidade, é impossível fazer umas sem outras ao mesmo tempo. Ao que se acrescenta a reforma concomitante da mentalidade sociopolítica dos angolanos. As reformas de papel pouco ou nada valem sem a mentalidade colectiva que as suporte. É preciso uma “revolução reformista”.
O presidente João Lourenço não é reformista, nunca o foi e nunca o será. Um outro seu recente discurso, proferido na reunião do Comité Central do MPLA, expôs a sua resistência à democratização interna e à modernização do seu próprio partido. Não confundamos modernização com acesso e exibição de bens materiais, currículos políticos e diplomas académicos dos membros influentes.
O MPLA enfrenta a sua pior crise interna e na relação com as massas sob seu controlo, desde os massacres do 27 de Maio de 1977. Nessa data, uma ala do MPLA eliminou de forma brutal e impiedosa a outra que se lhe opunha e milhares de cidadãos inocentes pelo meio.
Mas, com o vácuo de lideranças políticas e sociais visionárias que o país atravessa, como podemos construir uma agenda de reformas inclusiva que sirva de manifesto para a união dos angolanos, primeiro, em torno da realidade? Como podemos libertar os poderes de mobilização política e social para devolvermos as esperanças e a iniciativa a todos os angolanos que anseiam, sonham e querem participar na construção de uma Nação que não seja a do presidente e dos dirigentes, mas de todos os angolanos?
Cada um de nós, no pleno exercício das suas faculdades mentais, dos seus direitos e deveres políticos e civis, tem capacidades de liderança específicas no seio da família, no local de trabalho, de estudo ou de recreação, etc. Propomo-nos, com efeito, embarcar num exercício de identificação das preocupações quotidianas da sociedade e de procura das decisões políticas necessárias para as solucionar. Trata-se de desenvolvermos um olhar mais atento e de debatermos, de forma constante, sobre o tipo de lideranças de que o país precisa, virtudes pessoais, competências, capacidade de ouvir e exprimir amor à pátria e ao povo. Precisamos de pensar nisso e debater até à exaustão para que, em 2027, o poder não seja entregue nem caia em mãos erradas. É a luta!
Article publié le jeudi 17 octobre 2024
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