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Decorreu hoje no Palácio da Justiça, em Luanda, o Colóquio sobre Ética e Deontologia Profissional, organizado pela Ordem dos Advogados de Angola (OAA). O evento, que foi aberto pelo bastonário, José Luís Domingos, contou com vários especialistas em direito, mas não só. Rafael Marques de Morais participou com uma comunicação sobre a importância do papel da OAA enquanto mandatária da sociedade civil.
“Ilustres presentes,
Agradeço, antes de mais, o amável convite do bastonário José Luís Domingos para apresentar aqui hoje esta minha comunicação.
Proponho que façamos uma breve “viagem” retrospectiva que nos ajudará a reflectir em conjunto sobre o mandato social da Ordem dos Advogados de Angola e sobre os grandes avanços e recuos do sistema judicial angolano. Esta “viagem” parte de uma experiência pessoal, ocorrida há 24 anos.
A 30 de Março de 2000, a Ordem emitiu uma declaração pública na qual criticava o juiz Cangato pela sua ilegítima decisão de suspender o meu então advogado, Luís Nascimento, por um período de seis meses, coincidindo com o período do meu julgamento sobre o “baton da ditadura”. A maka foi simples. O advogado tentou apresentar provas, em defesa da minha inocência, contra o então presidente da República, e o juiz recusou-as. Perante a impossibilidade de me defender com provas, o advogado retirou-se da sala, e o juiz decidiu puni-lo.
Na sua declaração, a Ordem denunciou o facto de o mesmo juiz ter indicado um defensor oficioso, sem formação em direito, para me representar.
Por sua vez, o Tribunal Supremo, a 7 de Abril, emitiu também a sua nota pública, através dos órgãos de comunicação social, acusando a Ordem de ter criado um clima injusto de suspeição e descrédito do sistema judicial, no país e no estrangeiro, etc.
A verdade é que a Ordem se limitou, neste episódio, a defender a sua competência exclusiva de suspender o exercício da advocacia por um membro seu, competência essa que o juiz usurpara. Por sua vez, o Tribunal Supremo assumiu publicamente a sua instrumentalização política ao criticar publicamente a Ordem. Eu permaneci sem defesa legal, e o Tribunal Supremo manteve a minha condenação.
Passados 24 anos, urge perguntar: Qual é a reputação actual do sistema judicial em Angola? Quais são os grandes avanços e quais são os maiores recuos que se verificaram até hoje no referido sistema? São questões importantes, a que deve ser dedicada reflexão noutros debates.
Foquemo-nos agora no papel da Ordem dos Advogados e no seu mandato social.
Ubi societas, ibi ius. Esta expressão latina, muito usada pelos juristas, significa “onde há sociedade, há direito” e resume a ideia de que a existência de uma sociedade pressupõe a necessidade de leis e normas que regulamentem as relações entre as pessoas. Por outras palavras, o direito é uma construção social que surge a partir das interacções e das necessidades da sociedade.
Em termos práticos, se tivermos duas ou mais pessoas juntas, teremos sempre opiniões, necessidades, ambições diferentes, que têm de ser resolvidas através de regras, sem as quais os indivíduos rapidamente entram em conflito uns com os outros.
O direito deve ser o solucionador dos conflitos em sociedade. Sem direito, andaríamos em permanente guerra uns contra os outros. Se o direito surge da necessidade de resolver os conflitos em paz, é preciso que alguém aplique esse direito, que decida o que é o direito – ius dicere – em cada caso. E daí nasce o poder judicial.
Assim, sociedade, direito e poder judicial estão intrinsecamente ligados, e sem esta existência em harmonia não é possível uma convivência pacífica.
Este é o fundamento que me leva a considerar a relevância da Ordem dos Advogados face à sociedade angolana.
A Ordem é a mandatária da sociedade civil para a organização equilibrada e harmoniosa do direito.
E a primeira instrução do mandante é que a Ordem deve promover e contribuir para a independência do poder judicial. O poder judicial só cumprirá devidamente a sua função de ius dicere, contribuindopara pacificar a sociedade, se for independente e imparcial, se todo o povo acreditar que faz justiça.
Se não for assim, não é um verdadeiro poder judicial, mas sim um mero poder executivo trajado de beca (o traje dos juízes).
É precisamente esta a importância da Ordem como membro determinante do sistema de justiça angolano: garantir que o poder judicial não é o poder executivo de beca.
Em Angola, a história do poder judicial independente não existe. Primeiro, pela própria formulação marxista da então Lei Constitucional, que não admitia que o direito fosse independente, mas apenas uma mera projecção da infra-estrutura das relações de produção. Depois, pelas suas características de puro instrumento do poder político, como exemplifiquei. Haverá excepções, mas o quadro é desmoralizador. A busca de um poder judicial independente para Angola é a primeira tarefa de uma Ordem dos Advogados em sintonia com a sociedade civil.
Há, porém, um segundo aspecto que é preciso abordar: o da corrupção. As histórias, mais ou menos comprovadas, de juízes e procuradores corruptos abundam. Contudo, é óbvio que, em situações de corrupção entre juízes e procuradores, o papel dos advogados é a outra face da mesma moeda. Um é corrompido, outro corrompe. Sem um, não há o outro.
Neste sentido, a promoção da ética e deontologia do advogado contra a corrupção é também uma tarefa fundamental na ligação entre a sociedade civil e a Ordem.
A sua ética deverá ser uma ética de transparência e de integridade, contribuindo para fortalecer as instituições públicas e garantir a igualdade de tratamento e oportunidades para todo o povo.
Compete ao bastonário da Ordem dos Advogados destacar a importância de dotar a justiça de meios adequados para enfrentar a corrupção de forma eficaz, a começar pela que é praticada pelos advogados.
Em suma, o papel da Ordem é agir como mandatária da sociedade civil, como promotora da independência do poder judicial e como garante do combate à corrupção no sistema de justiça.
Dito isto, não se devem confundir papéis. Uma vez que estou perante uma plateia de ilustres juristas, abuso do latim. A regra geral deve ser modus in rebus.
A expressão latina modus in rebus significa “há medida nas coisas” ou “tudo tem um limite”. Esta frase provém de uma das sátiras do poeta romano Horácio, em que alerta contra os excessos e recomenda a moderação. É utilizada principalmente para sugerir que algo está a exceder o tolerável e que é necessário encontrar um equilíbrio.
Esse equilíbrio implica que cada um desempenhe a sua função e não se intrometa na esfera do outro.
A Ordem não é a sociedade civil, nem a deve substituir, tal como a sociedade civil não é a Ordem.
Cada órgão social tem a sua função e os seus objectivos.
Vivemos numa sociedade em que somos governados pela confusão, a todos os níveis das relações políticas e socioeconómicas. Confundir tudo e criar linhas de atrito é sempre a melhor forma de vencer as boas intenções reformistas e de boa governação. Esta é uma das razões dos falhanços óbvios em que têm resultado várias propostas alternativas e movimentos democráticos.
Todos querem fazer tudo, todos querem ser tudo.
No fim, somos nada, perdemo-nos enrolados na significância da nossa insignificância.
É por isso que é fundamental não confundir papéis, não sendo exagerado reiterar a mensagem: a Ordem dos Advogados não é a sociedade civil, nem tão-pouco a sua organizadora; é, isso sim, a sua mandatária para a justiça.
Mandato é um contrato através do qual uma pessoa (mandante) confere a outra (mandatário) poderes para agir em seu nome e em determinadas situações. É isso mesmo que deve acontecer. Para promover a independência do poder judicial e combater a corrupção no sistema judicial, é fundamental estabelecermos um contrato social entre a sociedade civil e a Ordem dos Advogados.”
Article publié le Friday, September 27, 2024