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A crise lançada pelo anúncio dos resultados das eleições ocorridas em Moçambique a 7 de Outubro passado ainda não terminou, mas permite retirar alguns ensinamentos que se poderão aplicar a qualquer país confrontado com uma situação semelhante à deste país.
Há quem pretenda fazer uma transposição automática de lições para Angola. Mas é preciso cautela. Se existem pontos em comum – como a colonização portuguesa e a luta contra essa colonização, o domínio de um único partido desde a independência, em 1975, o teor inicialmente marxista desses partidos dominantes, a existência de uma guerra civil e a frustração das expectativas de desenvolvimento rápido, além da captura do Estado por interesses privados –, também há várias diferenças a registar.
Em Moçambique, a guerra civil só começou em 1977, dois anos após a independência, e foi manifestamente induzida pelos regimes de minoria branca da Rodésia e da África do Sul. Por sua vez, a paz, alcançada em 1992, foi mantida de modo algo precário, com intermitências e conflitos com alguma intensidade. Já Angola só obteve a paz em 2002, e na sequência de uma vitória militar. Contudo, desde então não houve intermitências nem conflitos intensos. Moçambique tem um Estado fraco, com dificuldade em afirmar a sua soberania em vastas áreas do território, precisando de tropas estrangeiras para garantir a sua segurança, ao contrário de Angola. Portanto, há que ter alguma prudência nas comparações.
Em todo o caso, vale a pena aprofundar alguns aspectos relevantes que dizem mais do que as retóricas inflamadas que habitualmente acompanham estes momentos.
A FRELIMO cometeu um erro crasso ao avançar com uma vitória de 70% do seu candidato. Qualquer pessoa com bom senso perceberia tratar-se de um manifesto exagero, não correspondendo à realidade. A FRELIMO apresentou-se dividida nestas eleições, como o processo de escolha fratricida do candidato tinha demonstrado; o candidato Daniel Chapo era desconhecido do grande público; e a governação dos últimos anos foi marcada pelo escândalo das “dívidas ocultas”, que levou a julgamento vários membros destacados do partido, e pela insurgência em Cabo Delgado, que mostrou a incapacidade do governo. Em lado algum havia suficientes motivos de regozijo com a governação que justificassem 70% dos votos. Este descaramento, obviamente, acirrou os ânimos e terá levado muitas pessoas à rua.
Um outro aspecto que tem sido relevante nesta crise é a irrelevância das reacções da comunidade internacional. Aqueles que esperavam que fossem os estrangeiros poderosos a resolver os problemas africanos têm de se deixar dessas miragens. A comunidade internacional não saiu das platitudes habituais e deixou correr, esperando que a agitação não prejudicasse em demasia os seus negócios bilionários. Não é bom, nem mau. É assim mesmo e há que ser realista. São os moçambicanos que têm de resolver os problemas de Moçambique, como os angolanos os problemas de Angola.
E aqui entra o essencial do que se antecipa em relação a Moçambique. Venâncio Mondlane, ao contrário de Adalberto da Costa Júnior em Angola, optou por uma forte mobilização de rua com vários elementos de resistência civil, como manifestações, panelaços, greves, etc. O governo moçambicano reagiu com violência, e rapidamente se entrou numa espiral de violência e contraviolência, com acusações de parte a parte.
Isto teve um efeito curioso: a sociedade civil moçambicana, que parece bem organizada e estruturada, começou a intervir, fazendo valer os seus pontos de vista e tentando sobrepor-se à escalada de violência. Tivemos o escritor Mia Couto solicitando que a Ordem dos Advogados volte a público “para que, com o peso da vossa instituição, contribua para a normalização da vida do nosso país”, tentando demonstrar que as manifestações tinham chegado a um ponto que não resolviam qualquer crise, mas acentuavam a desgraça e o sofrimento do povo. Numa linha igual de equilíbrio e apelo à negociação de um futuro melhor escreveu Ernesto Nanhale, académico e responsável da MISA Moçambique (defensor da liberdade de expressão). “Em vez de violência, sou da opinião de que o compromisso com a justiça é superior e deve envolver a renegociação da valorização das liberdades e da participação”, acrescentando: “Precisamos forçar a negociação do contrato social, corrigindo os erros do passado em que os dois actores políticos estavam sozinhos, mantendo negociações para seus próprios interesses. Mas uma negociação que inclua a sociedade nos seus mais variados campos: político, religioso, académico, de defesa, económico, mediático, de justiça, de saúde, etc.” Luís Nhachote, jornalista e director do Centro de Investigação Jornalística de Moçambique, também se pronunciou, apelando a manifestações ordenadas e articuladas, no interesse da sociedade e que não funcionassem para o seu prejuízo, e o empresário Amade Camal sugeriu a formação de um Governo de Unidade Nacional como saída da crise pós-eleitoral.
Mais recentemente ainda, a Ordem dos Advogados Moçambicanos voltou a pronunciar-se no sentido de repudiar a violência nas manifestações em curso, parecendo tomar uma posição de apelo ao fim das manifestações com violência de parte a parte e ao início de um diálogo político.
A ideia com que um observador externo fica é de que Venâncio Mondlane acreditou num levantamento espontâneo da população, que se verificou até ao ponto em que entrou numa anarquia, sem organização, sem enquadramento, o, que, agora, estará a prejudicar mais o cidadão comum do que as autoridades, que se limitam a disparar. Este espontaneísmo já não parece contar com o apoio de fortes sectores da sociedade civil que, vendo a FRELIMO fragilizada, o que é um facto, preferem entrar num projecto negocial de reconstrução do país de forma organizada e congregando os vários sectores e todos os esforços.
Ao contrário de muitos pessimistas, não acreditamos que em Moçambique possa ficar tudo na mesma. É possível – se a actual mobilização da sociedade moçambicana se mantiver e se encetar um novo diálogo com o poder ferido – encontrar um ponto de convergência e tolerância para um futuro melhor.
Acresce que o Conselho Constitucional ainda não validou os resultados eleitorais e, atendendo a que a equipa de Venâncio Mondlane produziu um manancial de provas sustentáveis que apontam para múltiplas irregularidades, é provável que existam mudanças nos resultados que obriguem efectivamente a algum tipo de governo de conciliação.
É também do interesse do governo não radicalizar posições, para não tornar o país ingovernável. Por isso, a mão que a sociedade (os escritores, académicos, jornalistas, empresários) está a estender deve ser correspondida.
Article publié le jeudi 21 novembre 2024
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